As notícias sobre os casos de primeiros infectados com o vírus da COVID- 19 só vieram a ser confirmadas no Brasil em 26 de fevereiro de 2020. Nesse momento a LGPD já havia sido promulgada desde 14 de agosto de 2018, mas suas sanções só vieram a ser aplicadas em agosto de 2021.
Face à confirmação pela OMS da COVID-19 como pandemia, antes mesmo de se proliferar entre os estados e municípios do Brasil, foi publicada a Lei Federal 13.979/20201 em 6 de fevereiro de 2020, trazendo medidas para o enfrentamento da crise que passamos a vivenciar.
No artigo 6° da Lei Corona, como foi nomeada, estipulou-se a obrigatoriedade do compartilhamento de dados “essenciais” para identificação de infectados e também os suspeitos, entre os órgãos e entidades da administração pública, objetivando controlar e tentar diminuir a disseminação do vírus.
O artigo trouxe a seguinte redação:
Art. 6º É obrigatório o compartilhamento entre órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal de dados essenciais à identificação de pessoas infectadas ou com suspeita de infecção pelo coronavírus, com a finalidade exclusiva de evitar a sua propagação.
§ 1º A obrigação a que se refere o caput deste artigo estende-se às pessoas jurídicas de direito privado quando os dados forem solicitados por autoridade sanitária.
§ 2º O Ministério da Saúde manterá dados públicos e atualizados sobre os casos confirmados, suspeitos e em investigação, relativos à situação de emergência pública sanitária, resguardando o direito ao sigilo das informações pessoais.
O problema em questão foi que nas medidas a serem adotadas, determinadas pela lei, não estipularam limites sobre quais os dados pessoais que iriam ser compartilhados, apenas que seriam os considerados “essenciais” para que fosse possível chegar a identificação.
O trabalho com base em dados abertos pelo poder público está previsto desde 2016 no Brasil, mas especificamente no artigo 4º e 24 do Marco Civil da Internet, o qual estipula as diretrizes para que esse tratamento ocorra por meio de sistemas e organizações que passam a operar os dados de forma transparente, de forma interoperável.
Além disso, a pandemia demonstrou que a interoperabilidade e a integração funcionaram como facilitadores das operações e do trabalho conjunto no combate ao vírus.
Nesse contexto de integração, o Governo Federal apresentou a celebração de parcerias entre o Ministério da Ciência e Tecnologia, juntamente com grandes operadores de telecomunicações atuantes no Brasil, para utilizarem dados de geolocalização fornecidos através de smartphones visando controlar aglomerações e verificar se as quarentenas estavam sendo efetivas. A medida, no entanto, foi bastante criticada e até mesmo comparada à utilizada pelos chineses. Dessa forma, o Governo Federal acabou por não efetivar tal iniciativa. Mas ocorre que isso não impediu que estados, como São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, entre outros, fechassem parcerias semelhantes e utilizassem sinais de smartphones, monitorando o isolamento e aglomerações.
O que preocupa, quando falamos de proteção de dados, é que nenhuma dessas iniciativas tiveram os termos estipulados completamente respeitados. As entidades se preservaram com a omissão, advinda do poder público, no momento em que a LGPD não estava com as sanções em vigor e atuaram de forma contrária ao que estipula a Lei, pois de acordo com o artigo 4º §1º “o tratamento de dados pessoais deverá prever medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público devendo ainda ser observado a necessidade do devido processo legal, os princípios gerais de proteção e os direito do titular do dado”2, e complementa o artigo 7º,§3º:
Art. 7º O tratamento de dados pessoais somente poderá ser realizado nas seguintes hipóteses:
(…)
§ 3º O tratamento de dados pessoais cujo acesso é público deve considerar a finalidade, a boa-fé e o interesse público que justificaram sua
No dia 17 de abril de 2020 foi editada a Medida Provisória 9543, passando a obrigar que empresas de telecomunicação compartilhassem dados pessoais de seus usuários, como numero de celular, nomes e endereço constantes em suas bases de dados, com a finalidade de dar suporte à produção de estatística oficial da “Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – IBGE”, durante o momento de calamidade de saúde pública vivenciada.
Mesmo a MP prevendo a proibição de compartilhamento dos dados colhidos com quaisquer dos órgãos do poder público e empresas privadas, determinando o descarte em até improrrogáveis 30 dias após o termino do estado emergencial pelo IBGE, a referida medida foi questionada pelas ADI’s (Ações Diretas de Inconstitucionalidade) 6.387, 6.388, 6.389, 6.390 e 6.3934, tendo o STF, inicialmente, determinando a suspensão de forma cautelar em decisão proferida pela Ministra Relatora Rosa Weber e em plenário declarada a sua inconstitucionalidade.
A decisão proferida foi baseada na violação às cláusulas constitucionais assecuratórias da liberdade individual, da privacidade e do livre desenvolvimento da personalidade, previstas no artigo 5º, caput e incisos X e XII da Constituição Federal, pois deveria ter sido delimitado o objeto das estatísticas a serem produzidas, além da finalidade específica e também a amplitude da pesquisa, tendo em consideração que o tratamento de dados pessoais pelos agentes públicos não pode ultrapassar os limites estipulados pela LGPD e a Constituição Federal.
Foi considerado que a Medida Provisória não trouxe questões cruciais como o porquê seria necessária a disponibilização dos dados, nem a forma que seriam utilizados.
Ademais, é importante ressaltar que a decisão levou em consideração as consequências advindas de acontecimentos recentes na sociedade, preocupando-se com a chance de surgir um Estado de Vigilância, onde a liberdade e o individualismo possam vir a ser restringidos com mais facilidade.
Para J. Balkin:
O Estado de vigilância caracteriza-se pela coleta, ordenamento e análise de dados, usando-os na identificação de possíveis ameaças à segurança, na prestação de serviços sociais e na governança da população.5
J.Balkin
Ainda sobre a decisão das ADI ‘s, em seu voto, a Min. Relatora suscitou que as crises consequentemente enfraquecem os direitos do cidadão e, a exemplo da vivenciada com o Coronavírus, trazer as questões debatidas nessas Ações Diretas de Inconstitucionalidade é um marco histórico para o Brasil, corroborando para proteção do direito fundamental à privacidade dos brasileiros antes mesmo da LGPD entrar em vigência.
O Min. Gilmar Mendes, ao proferir seu voto, também destacou que a decisão contribui para firmar uma jurisprudência sobre o direito à autodeterminação informacional no Brasil, além de proibir a intervenção do estado de maneira arbitrária, reafirmando o princípio constitucional da privacidade e da intimidade.
Além disso, a decisão proferida pela Corte Constitucional também levou em consideração o Direito ao Sigilo previsto na Constituição Federal, como também os direitos em geral da Personalidade, assim tornando mais forte o Direito à Proteção de Dados Pessoais.
A iniciação do julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade, juntamente com o cenário vivenciado diante da proliferação da COVID-19, demonstrou a necessidade da existência de uma atuação aberta do Estado para que se tenha maior entendimento sobre as ações do poder público, assim como de suas políticas.
Não se pode utilizar a crise vivenciada para justificar uma maior intervenção na privacidade dos brasileiros. Mesmo com o resultado positivo das ADI ‘s, só se teria um efetivo combate sem ferir o direito à privacidade se fosse respeitado o que se estipula na LGPD.
1 BRASIL. Lei nº 13.853, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais: (LGPD).. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 20 abr. 2022.
2 BRASIL. Lei Nº 12.965: “Marco Civil da Internet. Brasil, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 15 abr. 2022.
3 BRASIL. Medida Provisória nº 954, de 17 de abril de 2020. Medida Provisória Nº 954. Brasil, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/mpv/mpv954.htm. Acesso em: 27 abr. 2022.
4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Adis 6.387, 6.388, 6.389, 6.390 e 6.393 nº 6.387, 6.388, 6.389, 6.390 e 6.393. PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE ( P -SOL). PRESIDENTE DA REPÚBLICA. Relator: MIN. ROSA WEBER. Brasilia, DF, 07 de maio de 2020. Brasilia, . Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754358567. Acesso em: 29 abr. 2022.
5 BALKIN, J. The Constitution in the National Surveillance State. Minnesota Law Review, Minneapolis, v. 93, n. 01, p. 01-25, 2008.