A incessante luta contra a evasão fiscal, ao longo dos anos, teve a sua história inovada pelos mais variados veículos normativos, tanto na esfera Federal quanto nas esferas Estadual e Municipal.
Não foram poucas as leis editadas com o objetivo de obstaculizar o descumprimento de obrigações tributárias, garantindo, assim, a efetividade do sistema arrecadatório brasileiro.
Em âmbito municipal, o interesse antievasão levou várias Prefeituras a editarem normas de cunhos fiscalizatório (estabelecendo espécies de cadastros, por exemplo) e arrecadatório (dispondo sobre responsabilidade pelo pagamento de tributos) e, conciliando essas naturezas, as normas municipais que mais se destacam são aquelas que instituem e regulamentam o Cadastro Mercantil de Contribuintes (CPOM).
No âmbito do Município do Recife, a Lei nº 15.563/91 (Código Tributário Municipal), com redação dada pela Lei nº 17.767/12, passou a prever que será responsável pelo pagamento do Imposto sobre Serviços (ISS) o tomador ou o intermediário, sempre que “o prestador do serviço estabelecido ou domiciliado no Município do Recife não comprovar a sua inscrição no Cadastro Mercantil de Contribuintes ou deixar de emitir a Nota Fiscal de Serviços, estando obrigado a fazê-lo”.
A obrigatoriedade de cadastro, vinculada à possibilidade de responsabilização do tomador ou intermediário pelo pagamento do ISS, pode ser questionada sob vários aspectos.
De imediato, sob o aspecto da sistemática de tributação do Imposto sobre Serviços.
No termos dos arts. 3º a 5º, da Lei Complementar nº 116/03, o serviço será considerado como realizado e, por conseguinte, será devido o imposto (pelo prestador), no local do “estabelecimento prestador”, assim entendido “o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional”.
Por se tratar de conceito que, em certos aspectos, é revestido por considerável grau de generalidade, a extensão do “estabelecido prestador” sempre foi tema recorrente nas Cortes de Justiça, em especial no STJ, que, conferindo critérios interpretativos, firmou jurisprudência no sentido que o estabelecimento prestador é aquele que possua uma organização (universalidade de bens) necessária ao exercício da atividade profissional. Quer dizer: aquele que possuir o complexo de bens indispensáveis à prestação do serviço tributável.
Sem esforço, percebe-se que a responsabilidade pela falta de cadastro no CPOM é, no mínimo, estranha, na medida em que estende ao tomador de serviços uma responsabilidade que, a princípio, era exclusiva do prestador.
Em verdade, isso até poderia ocorrer, mas desde que fosse matéria prevista e regulamentada em lei complementar.
Aqui, constata-se o segundo aspecto que legitima todas as críticas ao CPOM: a matéria, ao contrário do que entendem alguns Municípios, nunca foi regulamentada por lei complementar.
Em que pese o art. 6º, da Lei Complementar nº 116/03, autorizar aos Municípios, mediante lei, atribuírem a responsabilidade pelo crédito (de ISS) a terceira pessoa, o mesmo dispositivo faz a ressalva de que essa terceira pessoa deve ser “vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação”.
Salvo melhor juízo, não é isso o que ocorre com o Cadastro Mercantil de Contribuintes.
Por “fator gerador” entende-se, comumente, aquilo que representa o evento descrito na norma tributária como necessário e suficiente à tributação. São, por exemplo, os fatos de auferir renda, realizar operação de circulação de mercadoria ou, como é o caso do ISS, prestar serviço.
Realizar cadastro perante Prefeitura nada mais é do que uma obrigação acessória, definida, pelo art. 113, §2º, do Código Tributário Nacional, como “prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos”.
Nesse contexto, enquanto não houver efetiva regulamentação por lei complementar, não podem, os Municípios, legislarem sobre responsabilidade pelo pagamento do ISS por descumprimento de obrigação acessória. Por consequência, não pode haver, ao menos neste momento, responsabilização de terceiros pela falta de cadastro, do prestador de serviços, junto a Secretarias Municipais.
Ademais, a depender dos fatos, a obrigatoriedade do cadastro no CPOM também pode ser criticada sob a ótica da bitributação. Afinal, não pode o Município do tomador direcionar, em face deste, cobrança pela falta de cadastro do prestador perante o CPOM quando o imposto já tiver sido recolhido ao Município verdadeiramente competente (o qual, conforme dito anteriormente, será, via de regra, aquele em que estiver localizado o estabelecimento prestador).
Foi nesse contexto que o Supremo Tribunal Federal, em decisão recente (proferida em 01/03/2021 e publicada em 16/03/2021), ao julgar o Tema nº 1.020, reconheceu a inconstitucionalidade do caráter obrigatório no cadastro CPOM.
De acordo com o voto proferido pelo Ministro Marco Aurélio, nos autos do Recurso Extraordinário nº 1.167.509 (leading case do Tema 1020), a norma que torna obrigatório – sob pena de responsabilização do tomador – o cadastramento do prestador perante Secretaria Municipal “opera verdadeira modificação do critério espacial e da sujeição passiva do tributo, revelando duas impropriedades formais: a usurpação da competência legislativa da União, a quem cabe editar a norma geral nacional sobre a matéria, e a inadequação do móvel legislativo, considerada a exigência constitucional de veiculação por lei complementar”
Nesse contexto, foi acolhida a seguinte tese para julgamento em repercussão geral:
“É incompatível com a Constituição Federal disposição normativa a prever a obrigatoriedade de cadastro, em órgão da Administração municipal, de prestador de serviços não estabelecido no território do Município e imposição ao tomador da retenção do Imposto Sobre Serviços – ISS quando descumprida a obrigação acessória”
Em que pese a decisão, por vezes, referir-se ao Município de São Paulo/SP (que era parte recorrida do leading case), é certo que, por tudo e em tudo, as razões de decidir devem ser aplicadas também ao CPOM dos demais Municípios, especialmente porque a tese firmada em regime de repercussão geral não faz qualquer restrição ou ressalva quanto a sua extensão (e, na verdade, nem poderia fazer, haja vista que, havendo afetação em regime de repercussão geral, a matéria discutida transcende aos limites subjetivos da causa, devendo ser aplicada a todos os contribuintes).
Desta forma sendo reconhecida a inconstitucionalidade da cobrança por falta de cadastro no CPOM, e não havendo modulação de efeitos da decisão, toda cobrança, realizada sobre tal fundamento deve ser declarada como ilegítima, sendo possível a repetição dos valores indevidamente recolhidos e desde que respeitado o prazo prescricional da pretensão.
Por fim, há de se lembrar que embora as normas antievasão exerçam papel fundamental na sistemática de tributação brasileira, apenas pode-se considerar como evadido algo que, em tese, poderia ser exigido, sendo vedado, portanto, levantar a bandeira da evasão para tributar fatos não contemplados pela legislação.
Matheus Lucena